A arte e o sabor da moqueca baiana: tradição e costumes
Se alguém disser que no Espírito Santo e no Pará também existe moqueca, não atire ovos na pessoa. Guarde-os para fazer outra moqueca, porque a análise histórica e cultural da culinária brasileira mostra que há diferentes formas de preparar essa iguaria. Só que a baiana é infinitamente mais gostosa, como atestam dois rankings publicados em março pela enciclopédia gastronômica TasteAtlas.
A moqueca baiana ficou em 14º lugar na lista de ensopados e em 19º lugar na de pratos à base de frutos do mar, à frente do ceviche peruano e da paella espanhola. E a Península Ibérica tem sua ponta de participação no sucesso da receita local, pois deve-se aos colonizadores portugueses a adição à receita de leite de coco, fruta originária da Ásia, que os lusitanos trouxeram para a Bahia em 1553.
Narrar a história da moqueca baiana com precisão é quase tão difícil quanto acertar o ponto do cozimento na primeira tentativa. Até porque há historiadores e outros estudiosos que puxam a brasa do conhecimento para a sardinha dos povos originários, dos africanos, dos portugueses e, atualmente, de baianos e capixabas. O escritor e polímata santo-amarense Manuel Querino, considerado o formulador do conceito de gastronomia baiana, delineou a base da moqueca a partir das tradições africanas. No seu livro póstumo A arte culinária na Bahia, publicado em 1928, Querino descreve como base da moqueca o molho feito de sal, pimenta malagueta, coentro, limão, tomate e cebola, ingredientes que moídos são derramados sobre as postas dos peixes. E arremata: “Antes de levar a frigideira ao fogo para cozer o peixe, deita-se o azeite de oliveira ou o azeite de cheiro, conforme o paladar ou o gosto de cada domicílio, sendo preferido o emprego de ambos estes óleos”.
Co-autor do livro Comida de Santo que se come (2018), o antropólogo e professor da Ufba, Vilson Caetano, considera que a moqueca é, também, uma preparação de origem africana. "Alguns historiadores da alimentação, como Câmara Cascudo, por conta do nome, atribuem a origem do prato aos povos originários. Mas por que se chama moqueca? Não havia outra maneira de se consumir o peixe na cidade de Salvador sem ser moqueado", afirma o antropólogo, referindo-se à técnica milenar de desidratação de carnes utilizada por povos africanos e indígenas, que consiste em assar a proteína em uma estrutura triangular com caules de bambu, chamada moquém, controlando a temperatura.
"Colocavam-se folhas e madeiras no fogo, e a fumaça ia desidratando e saborizando a carne", declara Caetano. Essa prática, da qual derivou o verbo moquear (defumar), está na raiz do nome do município baiano, Muquém do São Francisco, emancipado em 1989, e onde antigamente garimpeiros, da Chapada Diamantina, paravam para assar a carne de suas pescas e caças a caminho de Goiás.
Ao comentar a base da moqueca proposta por Querino, o professor cita que encontrou uma base semelhante à nossa na Nigéria, durante uma viagem feita em 2020. "Era tomate, cebola, pimenta, pimentão vermelho e o azeite de dendê. E muito parecido com a nossa moqueca. O dendê entra como esse ingrediente que dá cor, cheiro e sabor", conta o antropólogo.
Para Caetano, o acréscimo do leite de coco deixou o prato mais aveludado, mais espesso. "Deixa a comida mais adocicada. Assim como o limão foi acrescentado. São notas da culinária brasileira", afirma o professor.
Montada a base do molho da moqueca, com ou sem leite de coco, o passo seguinte para a preparação é o azeite de dendê. A chef Tereza Paim recomenda a escolha de frutos maduros para evitar a acidez do dendê na produção artesanal do azeite.
"É preciso interação durante a produção artesanal", recomenda a proprietária do restaurante Casa de Tereza. "A fervura também é essencial, com a temperatura oscilando entre 80°C e 130°C”.
Na definição de Tereza, a moqueca é uma porção de uma comida caldosa que, em sua opinião, tem muito a ver com a forma de cozinhar do português. Mas a chef também lembra a versão defendida por alguns historiadores de que a moqueca deriva de poqueca, uma forma de cozinhar o peixe dentro de uma folha de palmeira, tradição presente em povos indígenas no Estado do Pará.
"Cada região tem suas características. Na Bahia, independentemente de que tipo seja, sempre leva leite de coco e dendê. A capixaba contém frutos do mar e colorau. Na moqueca paraense, eles já colocam tucupi também dentro", pontua Tereza.
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